A MENTALIDADE FEUDAL DE DAGOBERTO EM A BAGACEIRA
Jéssica Thais Loiola SOARES
Leonildo Cerqueira MIRANDA
Elizabeth Dias MARTINS
Universidade Federal do Ceará
RESUMO
Este trabalho analisa os resíduos do feudalismo medieval presentes no romance A bagaceira
(1928), de José Américo de Almeida, sobretudo quanto à personagem
Dagoberto, típico senhor de engenho nordestino cuja mentalidade
assemelha-o ao senhor feudal da Idade Média. Para tanto, pautamo-nos na
Teoria da Residualidade, método investigativo desenvolvido por Roberto
Pontes, da Universidade Federal do Ceará, que se baseia no princípio de
que toda cultura contém resíduos de outros tempos e espaços.
PALAVRAS-CHAVE: RESIDUALIDADE, IDADE MÉDIA, FEUDALISMO, SENHOR DE ENGENHO, A BAGACEIRA.
INTRODUÇÃO
Em 1928, dando início ao que depois viria a ser chamado de “geração regionalista de 30”, José Américo de Almeida publica A bagaceira,
romance que inaugurou a consciência de denúncia social que seria tão
forte nos escritores daquele período. A narrativa critica o sistema
latifundiário no Nordeste, grande causa da desigualdade social da
região. O cenário é o Engenho do Marzagão, onde Dagoberto Marçau é o
senhor de muitos dependentes, que lhe devem obediência, entre estes, uma
família de retirantes que lhe pede abrigo para fugir da seca de 1898.
O
romance não é considerado de grande valor estético pela crítica
literária, devido à linguagem em determinados momentos inadequada do
narrador, por demais erudita. Como dissera Coutinho (2005, p. 338, 339),
“o papel [de José Américo de Almeida] foi de ordem mais histórica do
que propriamente estética; ele foi um desbravador do caminho, cujo
domínio deixaria para outros.” Discordamos em parte de comentários como
este acerca de A bagaceira.
É verdade que José Américo de Almeida foi um “desbravador” e que a
linguagem de sua obra oscila entre o erudito – quando da fala do
narrador – e o popular – quando da fala das personagens. Esse, porém, é
um fato comum a obras de transição. A linguagem de A bagaceira
está em transição, e o romance não tem sua qualidade diminuída por
isso, já que encontramos claramente características de cunho regional e
uma forte denúncia social.
Neste trabalho, procuraremos mostrar, com base na Teoria da Residualidade, desenvolvida por Roberto Pontes1, da Universidade Federal do Ceará, como A bagaceira
contém fortes resíduos da mentalidade feudal da Idade Média, isto é, os
resíduos do modo de sentir, pensar, agir e viver da sociedade feudal
medieval, tão distante no tempo e no espaço, mas que ainda se manifesta
com todo vigor. Deter-nos-emos, sobretudo, na personagem Dagoberto
Marçau, senhor de engenho cujas relações com seus dependentes
assemelham-no ao senhor feudal da Europa dos séculos XI e XII, período
em que as relações de vassalagem foram mais intensas.
ACERCA DA TEORIA DA RESIDUALIDADE
Para analisarmos como a mentalidade feudal manifesta-se ativamente no
romance em questão, faremos uso da Teoria da Residualidade, método
investigativo desenvolvido por Roberto Pontes, que trabalha com o
princípio de que não há nada novo em uma cultura, tudo é residual. Isto
é, toda cultura contém resíduos de culturas anteriores. O “resíduo” é um
elemento do passado que se mantém plenamente ativo no presente, atuando
no processo cultural.
O que a Teoria da Residualidade estuda é o que remanesce de
“mentalidades” anteriores, ou seja, como a maneira de sentir, pensar,
agir e viver de um determinado grupo social de uma determinada época
pode ser percebido em outro grupo social de um período posterior.
Com o passar dos séculos, as culturas entram em contato umas com as
outras e, dessa forma, vão-se influenciando mutuamente, num processo
denominado “hibridação cultural”. Assim, justamente por essas
modificações que sofrem as culturas no decorrer do tempo, o que
remanesce de outro período não é a mentalidade em si, mas sua essência,
isto é, resíduos da mentalidade, que vão adquirindo nova roupagem, numa
espécie de adaptação ao novo espaço e à nova época. É o que a Teoria da
Residualidade chama de “cristalização”. É o refinamento de um elemento
do passado que está ativo no presente, e que está ativo exatamente
porque se adaptou naturalmente ao novo ambiente.
Mas, será possível afirmar, por exemplo, que no Brasil haja resíduos da
mentalidade medieval, tendo em vista que nosso país não teve Idade
Média? Sem dúvida, sim. À época da colonização brasileira, a Europa
encontrava-se no início do Renascimento. Os portugueses, contudo, ainda
viviam em plena Idade Média e trouxeram as características de tal
período consigo. Como afirma Roberto Pontes (2001, p. 27, 28),
Na
bagagem dos nautas, degredados, colonos, soldados, e nobres aportados
em nosso litoral, entretanto, se não vieram exemplares impressos de
romances populares da Península Ibérica nem os provenientes da
Inglaterra, Alemanha e França, pelo menos aqueles homens trouxeram
gravados na memória os que divulgaram pela reprodução oral das
narrativas em verso.
Assim,
desde cedo, à míngua de uma Idade Média que nos faltou, recebemos um
repositório de composições mais do que representativo da Literatura oral
de extração geográfica e histórica, cujas raízes estão postas na Europa
ibérica do final da Idade Média, justamente quando ganhavam definição
as línguas românicas.
Portanto, através de seus principais colonizadores, o Brasil recebeu
fortes influências medievais, sobretudo a região Nordeste, pois as
intempéries, o latifúndio, a estrutura familiar patriarcal, o isolamento
e o afastamento do centro administrativo são fatores que auxiliaram a
formação de uma mentalidade mais conservadora e tradicional, “pela
própria impossibilidade de contato com outras visões de mundo.”
(ANDRADE, 2010, p. 216)
Baseando-se nos conceitos aqui expostos, buscaremos mostrar como A bagaceira,
retrato da sociedade nordestina no final do século XIX e início do
século XX, apresenta resíduos da mentalidade feudal própria do período
medieval, especificamente na figura da personagem Dagoberto.
O HOMEM DE OUTRO HOMEM
O feudalismo representa bem mais do que simplesmente uma série de
características de uma relação econômica, mas sim a mentalidade de uma
sociedade, seu modo de sentir, pensar, agir e viver, quase sempre
inconsciente, afinal, conforme Georges Duby (1989, p. 56), o feudalismo
“é antes de tudo uma disposição do espírito.”
O regime feudal baseava-se nas relações de vassalagem, em que um homem
prometia servir a outro homem com auxílio, submissão e honra, em troca
de proteção – eram o vassalo e o senhor. Um senhor poderia ter muitos
vassalos e ser também vassalo de outro senhor mais poderoso do que ele,
assim como um vassalo poderia ser senhor de vassalos inferiores a ele,
numa grande rede. O senhor tinha duas formas de ajudar o seu servo: a
primeira, dando-lhe um lote de terras para cuidar e tirar seu sustento e
até riquezas, em troca de lealdade ao senhor; a segunda, abrigando-lhe
em sua propriedade.
Os servos pertenciam inteiramente aos seus senhores, que poderiam
imiscuir-se em quaisquer aspectos de suas vidas, em consonância com o
que relata Marc Bloch (s/d, p. 271): “cada vez mais o seu lugar na
sociedade se define pela sujeição para com outro homem”. A sociedade
feudal era a sociedade da desigualdade, em que os mais fortes dominavam
os mais fracos e os senhores tinham autoridade para agir com os seus
servos da maneira que quisessem, pois estes lhes pertenciam, sobretudo
os mais pobres, que não possuíam outra forma de subsistência e, assim,
dependiam do senhor para sobreviver. O feudalismo foi, de fato, um meio
de exploração, do qual os senhores faziam pleno uso.
O código de honra feudal exigia que o senhor também garantisse honra e
lealdade aos seus vassalos. No entanto, a prática era um pouco
diferente, principalmente quando os servos eram pessoas pobres,
completamente dependentes do senhor. Nesse caso, a exploração era ainda
maior:
[O
servo] trabalha nos campos ou nos prados do domínio. Ou ainda o vemos
transportar, por conta do senhor, pipas de vinho ou sacos de trigo, para
residências mais distantes. É à custa do suor dos seus braços que são
reparados os muros ou os fossos do castelo. Se o senhor tem visitas, o
camponês cede a sua própria cama para fornecer os leitos necessários
para os hóspedes. Quando chegam as grandes caçadas, é ele quem sustenta a
matilha de cães. Se finalmente rebenta a guerra, é ele ainda que [...]
se faz soldado de infantaria ou criado do exército. (BLOCH, s/d, p. 263)
Como
se pode notar, a relação entre o senhor e o servo não era nada
igualitária, sendo exacerbada a superioridade de um sobre o outro, de
modo que o servo pertence ao seu senhor, o qual aproveita tal
dependência a seu favor.
Além
disso, havia, na Idade Média, outro tipo de agrupamento, semelhante às
relações de vassalagem, porém com algumas peculiaridades, pois ocorria
justamente quando os servos eram essas pessoas pobres de que tratávamos,
que não possuíam meios de sobrevivência e dependiam inteiramente do seu
senhor. Nesse caso, encontramos ainda mais semelhanças entre este modo
de vida e aquele retratado em A bagaceira,
conforme veremos adiante. Embora não tenha surgido nem desaparecido na
Idade Média, foi nesse período que mais se solidificou. Estamo-nos
referindo ao senhorio fundiário, que abarca
o
território dominado pelo castelo e engloba as terras e os camponeses
que têm o seu senhor. O senhorio compreende, portanto, as terras, os
homens, as rendas, ao mesmo tempo que a exploração das terras e a
produção dos camponeses; e também um conjunto de direitos que o senhor
exerce [...] (LE GOFF, 2007, p. 78, 79).
No senhorio, era total a dependência do servo para com o senhor, que
utilizava sua autoridade para cometer grandes abusos e explorações. O
servo trabalhava mais do que podia, ganhava apenas o alimento necessário
para viver e tinha que estar à disposição do senhor, juntamente com
toda a sua família, para atendê-lo qualquer que fosse o seu desejo. Por
exemplo, se uma moça ficava órfã, o senhor de seu pai falecido é que
haveria de decidir o seu futuro, com quem se casaria, garantindo que seu
matrimônio fosse efetuado com alguém de sua classe, pois a desigualdade
social era muito grande. Todavia, muitas vezes o senhor sentia-se no
direito de esposar a moça, afinal, se o pai desta pertencia-lhe, tudo o
que era seu também lhe pertencia.
Podemos perceber que o senhor feudal mandava a seu gosto, exercendo sua
autoridade dentro de seu feudo ou de seu senhorio, da maneira que lhe
conviesse, sem haver ninguém que lhe contivesse, a não ser que agisse
erroneamente para com um superior. Como sintetiza Marc Bloch (s/d, p.
457), “o regime feudal supunha a estreita sujeição econômica duma
multidão de gente humilde, relativamente a alguns poderosos.”
Tal mandonismo foi exportado para o Brasil através de seus
colonizadores, dentre os quais se destacam os portugueses, que trouxeram
consigo sua mentalidade medieval, tradicionalista, patriarcalista e
autoritária, sendo difundida por todo o território brasileiro, sobretudo
no Nordeste, devido, principalmente, à exploração da cana-de-açúcar,
que exigia um regime em torno do latifúndio, como o feudalismo girava em
torno da terra; e ao isolamento da região, o que permitia uma maior
manutenção das tradições, do conservadorismo.
Constatamos, então, que o colonizador português lidava com seus
dependentes da mesma forma que o senhor feudal com seus servos, isto é,
com grande exploração e abusos, como explica Gilberto Freyre (2005, p.
271): “Não chega a haver clericalismo no Brasil. Esboçou-se o dos padres
da Companhia [de Jesus] para esvair-se logo, vencido pelo oligarquismo e
pelo nepotismo dos grandes senhores de terras e escravos.”
A
relação senhor-servo foi-se perpetuando, de tal forma que podemos
observá-la claramente nos senhores de engenho desde o Brasil Colônia até
o século XX, pelo menos. Afinal, o engenho era uma distribuição de
terra que tinha um senhor como autoridade maior e vários dependentes
dele, que recebiam abrigo e alimento, mas deviam-lhe obediência plena.
Não importa se os senhores de engenho, assim como os senhores feudais,
estavam abusando de seu poder, pois podiam fazer o que desejassem.
Freyre (2005, p. 324) bem assinala: “O mandonismo dos proprietários de
terras e escravos. Os abusos e violências dos autocratas das
casas-grandes.”
O
engenho brasileiro, portanto, foi uma continuação da mentalidade feudal
europeia, um resíduo da maneira de pensar que se manteve ativo com o
passar dos séculos, porque, afinal, é o senhor de engenho que decide e
comanda tudo com autoritarismo, como também o fizeram os senhores
feudais. Entretanto, o resíduo não permaneceu da mesma forma que era na
Idade Média, mas adquiriu nova roupagem, isto é, entrou em contato com
outras culturas, hibridizando-se, e refinou-se, adaptando-se ao novo
ambiente em que atua, ou seja, cristalizando-se.
Essa realidade brasileira de cunho feudal foi retratada em A bagaceira,
de José Américo de Almeida, em que Dagoberto Marçau, senhor do Engenho
do Marzagão, bem como os seus dependentes, demonstram a mentalidade
própria do feudalismo medieval por meio de suas ações de mando e de
obediência, respectivamente. No engenho, as relações entre estes e seu
senhor eram regidas pelo mesmo princípio que determinava as relações de
vassalagem na Europa dos séculos XI e XII: o homem de outro homem.
Podemos conferir isto no trecho a seguir, quando o narrador revela que
Dagoberto considerava como “seu” o povo que morava em sua propriedade:
“O senhor de engenho não queria bicho na terra. Não pusera dúvida em
deixá-los ficar, porém como seu, na bagaceira.” (ALMEIDA, 1972, p. 19, grifo nosso)
Logo
ao início da narrativa, uma família de retirantes que fugia da seca
pede “proteção” ao senhor de engenho, isto é, pede a Dagoberto que
permita que fiquem abrigados em sua propriedade. O senhor permite, mas
em “troca” de trabalho e “submissão”. Nesse ínterim, já podemos perceber
os resíduos da mentalidade feudal, cujas relações de vassalagem
baseavam-se na “troca” de “proteção” e “submissão”.
Dagoberto
Marçau é um viúvo extremamente autoritário, o típico senhor de engenho
brasileiro que José Américo de Almeida tanto queria denunciar.
Mencionaremos, a seguir, alguns exemplos de seu mandonismo sem limites.
Primeiro,
logo que a família de retirantes chega ao engenho para pedir abrigo ao
senhor, este o nega, e não permite que insistam: “- O que já disse está
dito!!” (ALMEIDA, 1972, p. 8) Mudou de ideia somente ao ver a beleza da
moça retirante e que lhe assemelhava a alguém, mas daí seus interesses
já eram outros...
Segundo,
relatemos o momento em que Dagoberto desabriga repentinamente um de
seus dependentes para poder acolher os retirantes que chegavam:
Intimado
a deixar a palhoça que ajudou a levantar, o caboclo coçou a cabeça e
correu à casa-grande, com o chapéu debaixo do braço:
-
Patrão, eu não me sujeito. O patrão sabe que eu não enjeito parada: sou
um burro de carga. Mas porém, nascer pra estrebaria não nasci.
Dagoberto não quis saber de mais nada:
- Pois, por ali, cabra safado! Você não nasceu pra estrebaria que é de cavalo de sela: nasceu foi pra cangalha!
Xinane continuou a coçar a cabeça [...] e, implorativamente:
Xinane continuou a coçar a cabeça [...] e, implorativamente:
- [...] Patrão, minha rocinha, atrás do rancho! [...]
- O que está na terra é da terra!
Era essa a fórmula de espoliação sumaríssima.
(ALMEIDA, 1972, p. 10)
“O
que está na terra é da terra”, assim, se é da terra, pertence ao seu
dono. Dagoberto revela que considera “seu” tudo o que está em sua
propriedade, inclusive as pessoas, em quem ele pode mandar, brigar e
expulsar quando quiser. Tanto era seu tudo o que estava na terra que,
certa vez, com a desculpa de amansar um boi, queimou-o vivo, para que
sofresse e não lhe desse mais trabalho.
Como
terceiro exemplo do mandonismo de Dagoberto, podemos mencionar o
episódio em que seu servo Latomia vem informar-lhe a respeito da morte
de um cavalo:
Nisto, chegou Latomia [...]:
- Patrão, o cavalo s’embaraçou e morreu enforcado!
- Cabra de peia, você foi o culpado!
E, ali mesmo, o senhor de engenho tirou o rebenque do armador e deu-lhe como nunca se dera em negro fujão.
O bravateiro apanhou de cabeça baixa talvez para livrar o rosto de alguma lapada cega. (ALMEIDA, 1972, p. 108)
Notamos, então, que o senhor do Engenho do Marzagão é, de fato,
extremamente autoritário, praticando violências ao seu bel-prazer. A
pior de todas as violências retratadas no romance, que será nosso quarto
exemplo, foi o estupro que cometeu contra Soledade, a tal moça que, com
sua beleza e semelhança com a esposa morta de Dagoberto, convenceu-o a
deixar sua família ficar no engenho.
Desde que chegara ao engenho, Soledade era assediada pelo senhor, até
que um dia, quando se banhava no açude, percebeu que estava sendo
observada por alguém e pôs-se a correr nua, pois Dagoberto havia
escondido sua roupa. Então, o senhor de engenho alcançou-a e, ali mesmo,
estuprou a virgem. Soledade não era uma moça pura e inocente, mas era
virgem, e aquele acontecimento provocou nela uma mudança brusca,
tornando-a ainda mais fria e voluptuosa, de forma que passou, depois, a
viver com Dagoberto.
Por fim, citemos a cena em que Valentim quer matar o feitor, Manuel
Broca, pensando que este era o homem que havia desonrado sua filha. Na
verdade, foi Dagoberto quem desonrou Soledade, mas, mesmo assim, este
mandou prender Valentim, com toda a violência, para que ele não
descobrisse o verdadeiro sedutor de sua filha: “Sujigue o homem!
Passe-lhe a embira! Isso! Acoche mais, de com força! – ordenou
Dagoberto.” (ALMEIDA, 1972, p. 98)
Constatamos, assim, que o senhor de engenho de A bagaceira
– reflexo de tantos outros Brasil afora – revela resíduos da
mentalidade feudal presente na Idade Média, no que tange ao mandonismo, à
exploração do fraco pelo forte e aos abusos praticados. No entanto, é
digno de nota observarmos que os dependentes do Engenho do Marzagão
também tinham resíduos de uma mentalidade medieval, a mesma mentalidade
dos servos feudais, que os leva a proteger o seu senhor. A título de
exemplificação, leiamos a passagem do romance que retrata os dependentes
protegendo a propriedade de uma enchente, isto é, auxiliando o senhor
de engenho, uma das regras do “contrato”:
Certa noite, vibrava um trovão nervoso, qual o clamor das trevas friorentas.
Acudiu toda a população rural ao pátio da casa-grande, debaixo do aguaceiro, convocada pelo búzio imperativo.
O açude estava a pique de arrombar.
A água prisioneira saltava pela barragem e batia nas pedras com um berro doloroso.
Pirunga,
descrente da coragem dos brejeiros, viu, estupefato, de repente, homens
e mulheres, às ordens do senhor de engenho, como que formando com os
próprios corpos uma barragem nova, atalhando o perigo. (ALMEIDA, 1972,
p. 86)
E por que esses homens e mulheres submetiam-se de tal forma a um patrão
tão cruel? Pela mesma razão que cerca de dez séculos atrás os servos
submetiam-se às vontades de seus senhores feudais, por mais injustas que
fossem: “A única forma de ‘recomendação’ de que temos conhecimento põe
em cena um pobre miserável, que aceita um senhor porque ‘não tem que
comer nem que vestir’.” (BLOCH, s/d, p. 164)
E isto se repete exatamente da mesma forma no romance em questão, como também relata o narrador de A bagaceira, referente aos dependentes dos senhores de engenho:
Nada tinham de seu: só possuíam, como costumavam dizer, a roupa do corpo.
Viver assim era, apenas, esperar pela morte.
Mas não tinham ideia de nada melhor. Os contrastes e confrontos é que são chocantes. (ALMEIDA, 1972, p. 78)
Ou
seja, os servos aceitavam tais condições porque não tinham outra
escolha, era a única forma de sobrevivência, e dessa condição mísera é
que o senhor, de certo modo, aproveitar-se-ia, daí sua atitude cruel e
exploratória, uma vez que sabia que todos lhe eram submissos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pelo
exposto, percebemos que Dagoberto reflete a mentalidade dos senhores
feudais medievais e os dependentes do Engenho do Marzagão, por sua vez,
refletem a mentalidade dos servos dos feudos da Idade Média, o que
demonstra que tempos, espaços e culturas entrecruzam-se infinitamente,
permitindo a perpetuação de um ou outro aspecto das culturas ao longo
dos séculos. Isto porque o elemento cultural é de tal maneira forte,
independentemente do aspecto em que ele se manifeste, que a essência
destes pensamentos – seus resíduos – remanesce, hibridizando-se com
outras culturas.
É
o que observamos nos engenhos brasileiros, mais especificamente
nordestinos, pois, constituídos em torno de um latifúndio, onde inúmeros
trabalhavam sob a égide do dono das terras, notamos o modelo do feudo
medieval, embora esteja distante temporal e espacialmente. Tal modelo,
como explanado neste trabalho, foi trazido para o Brasil pelos
portugueses no início da colonização. Então, se, desde o princípio, as
terras do Nordeste foram adubadas e semeadas com a mentalidade própria
da Idade Média, podemos afirmar que o sertão nordestino é,
essencialmente, medieval.
REFERÊNCIAS
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WECKMANN, Luis. Introducción. In: La Herencia medieval del Brasil. México: Fondo de Cultura, 1993, p. 17-28.
1 Roberto
Pontes é poeta, crítico, ensaísta e professor do Departamento de
Literatura e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal do Ceará.
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